Mais de dois milhões de espectadores em 15 dias, com uma seqüência já anunciada. A audiência do filme “De pernas pro ar” tem gerado repercussão na mídia, sob a forma de matérias e críticas. Aponta-se para um humor escrachado; rompimento de tabus ao abordar sexualidade; protagonismo de Ingrid Guimarães; influência da produtora Mariza Leão durante a elaboração da comédia brasileira. Pitacos aqui e lá; foco no produtor, na atriz, no tema – “sexo”. Mas de onde partir exatamente para entender o longa, que apresenta um complexo de sex shop aliado à família?
“Bem antes da estréia, fizemos pesquisas com 250 pessoas para testar o nível de aceitação do público ao filme no Rio e em São Paulo. Ali, percebemos que o longa era entendido pelos espectadores como uma história sobre a família. Esse foi um dos motivos para que mudássemos o título. Se ficasse o nome “Sex Delícia”, jamais chegaríamos a um milhão na primeira semana. O conservadorismo no Brasil ainda é grande” (Mariza Leão, produtora)
De pernas pro ar: “pro” contração própria do informalismo; “pernas”, parte baixa, que fixa o corpo; “ar”, alto, libertação
A comédia “De pernas pro ar” acaba por questionar limites do conservadorismo no Brasil, com destaque para família. O sexo é utilizado como instrumento para tal, donde é possível estabelecer um jogo, entre o que é digno de se guardar com carinho (amor) ou algo passageiro (paixão)
“Amor é cristão, sexo é pagão; amor é latifúndio, sexo é invasão” (Rita Lee)
A invencível Alice sofre ao ver o limite
Ingrid Guimarães é Alice. Mãe, com marido e um filho. Porém vive às voltas com o trabalho, em busca de resultados, desgarrada na busca pelas metas. Isso fica claro quando seu chefe a convida no início do filme para assumir um cargo superior, mas com o efeito colateral de ter menos tempo para a família. Ela diz “sim”, um exemplo de mulher do reaganismo, livre para a escalada capitalista na busca pela primeira posição. Na livre concorrência, Alice quer ganhar, não gosta de perder; um jeito que lhe custaria caro
O marido sai de casa, deixa um recado na secretaria pedindo um tempo. Alice leva um gol, que atinge o coração – a família fica desestruturada, como uma punição que põe em questão o lugar da mulher. Quem deveria ser? A mãe zelosa que espera o marido chegar a casa? A mulher que se afirma e cresce com escalada no emprego? Até que ponto; como arrumar tempo? Um momento pelo qual passa nossa sociedade. Pesquisa da consultoria Sophia Mind mostra que 32 % (cerca de um terço) das brasileiras têm jornada de trabalho maior que a dos seus maridos; cada vez mais têm menos filhos (1,94 por mulher, abaixo da taxa de reposição, segundo o IBGE). O ganho delas representa 40% do rendimento familiar, apesar de ganharem menos que os homens ainda; 70%
Alice vive uma transição. Para variar, é demitida após uma gafe no trabalho. Durante reunião, a marketeira retira de uma caixa peças de sex shop, o que deixa os componentes da mesa consternados. O material era na verdade para a vizinha dela, indo parar em suas mãos por uma troca acidental da encomenda que chegara ao prédio onde vivia. O imprevisto havia afetado Alice, que tinha tudo como certo, medido em resultados, estando pelo alto. Ela vai tirar satisfação então com a dona dos produtos eróticos, insultando-a, classificando como baixa. Marcela, dona da sex shop, é vivida por Maria Paula – atriz do Casseta e Planeta (programa humorístico da Rede Globo conhecido pela sátira), que chama Alice de mal amada. É o fundo do poço
Alice vai para casa e se recolhe. A televisão assistida demonstra isso; o isolamento, sem apego, ponto que o modo concorrencial buscando auto-afirmação a levou. A nova mulher, moderna, desgarrada, que não olha para a família, zappiava – passava os canais depressa, nada a satisfazia por completo. Buscando degrau a degrau, sem paradas, acabou não dando atenção ao amor; ao marido. Ficou assim descontrolada, por não saber o limite. Foi um alerta no filme
Do caos à redenção
Enquanto assistia à televisão, trocando de canais com rapidez, um deles, religioso, intrigou Alice. O pastor gritava aleluia – de uma maneira tão exacerbada que me lembra claramente dos risos altos ouvidos na platéia do cinema. A fala do pastor era incisiva com expressões faciais excêntricas, em interação com as reações de Alice, arrancando humor pelo exagero. Foi uma paródia clara aos programas de igrejas neopentecostais como “Igreja da Graça”; “Universal do Reino de Deus”; apesar de não haver nenhuma menção às instituições. Aqui se pode discutir o nivelamento de religiosidades, influenciando o público a ter uma preconceituação pouco respeitosa
Após ouvir o Aleluia, Alice vai à Marcela pedir desculpas. Aqui é possível um debate acerca da intolerância e seus limites, com um questionamento à Igreja Católica. O Aleluia pode ser ouvido em missas, como uma elevação espiritual, estar mais perto de Jesus, à direita de Deus Pai. Uma das mensagens cristãs é amar ao próximo, estando de acordo com Alice se redimir ante a dona de sexy shop – que tem homossexuais trabalhando – amando-a sem discriminação. Porém, a própria Igreja condena o homossexualismo, o envolvimento por prazer efêmero, ainda mais com utensílios sexuais. Cabe indagar até que ponto os dogmas podem contradizer as próprias pregações católicas. Essa redefinição de limites é sentida também por Alice, conduzida ao prazer por Marcela
Alice retorna ao sensual depois de todos os passos que construiu ficarem abalados tanto em família como no emprego. Guiada pela vizinha dona de sexy shop, busca um coelho para se masturbar. Olha para o bicho de pelúcia, mas não consegue prosseguir. É bloqueada pelo filho, que entra no quarto. A criança, esperança de que lhe resta ainda família, é base para reconstrução. Tudo pode vir abaixo, ao carnal, menos o menino puro, momento em que a mãe esconde o coelho debaixo do travesseiro. A moral é a proibição do envolvimento do jovem com sexo. Ele não pode tomar contato com a masturbação da mãe; momento de choque analisado por Freud ao qual chamava de imagem paleossimbólica, que mexe com o inconsciente – esse foi um momento de tensão no cinema
A única vez que Alice se masturba com o coelho foi depois de ir para uma festa à noite e se drogar. Em sã consciência ela não o faria. Pelo contrário, a marketeira não se entrega ao prazer no filme, mas o gere. Domina, mede e vende. Expande e ganha com o negócio de Marcela, atuando via Internet (uma chamada de atenção no filme para novas ferramentas de comunicação pela rede, e possíveis avanços em relação às mídias tradicionais de massa)
A combinação explosiva das sócias dá certo: mulher de negócios ligada à mulher erótica. Um ambiente criativo, medido, revolvido, reestabelecido, puxando o público. São outros ares, pouco conhecidos, como uma calcinha que treme com o barulho. Marketing foi representado no filme: mercado em movimento
Volta ao equilíbrio
Alice sempre curtiu escalar e obter sucesso. Por isso não podia aceitar perder o marido. Durante o filme, ela luta por ele. Quando soube que João (Bruno Garcia) estava no flat com uma possível “outra” mulher, a obstinada vai atrás. Porém, a relação só é restabelecida quando ele a chama para uma conversa num apartamento da Zona Sul. Alice cede
Os dois voltam a ficar juntos, com o marido determinando qual era a hora da discussão de relacionamento. É João que diz: “vem”; e ela vai. Ao aparente mostrar da mulher executiva e independente, o filme contrapõe a esposa dominada pelo homem. O conservadorismo fica evidente na conversa de João com o sogro (um idoso), que diz: “Se a mulher planta o amendoim, o homem vem com a paçoca”. Ele deve ser mais completo, à frente dela. Ainda assim o filme deixa a brecha para desconstrução desse olhar. Alice continuou trabalhando com sexy shop sem que João soubesse (nesse ponto ela estava mais à frente). O marido descobre durante um evento erótico promovido pela loja. O momento é o mesmo em que o sogro quebra a cara e se depara com a esposa (mãe de Alice), na festa, montando num pênis gigante de brinquedo. Ela, uma idosa, passou a trabalhar com a filha, em mais um sintoma de liberalismo (inclusive na abertura de postos de trabalho aos mais velhos que tendem a crescer na pirâmide etária brasileira)
A descoberta do marido é um momento de revelação no filme. Em seguida uma chuva cai do lado de fora, com trovões. Esses símbolos são remetidos a um orixá da umbanda, chamado Xangô. Reza o mito de que a entidade governava o reino oyô e subia numa pedreira, donde batia com seu machado (oxe) desfilando raios sobre os impostores, fazendo reinar a justiça. A chuva é relacionada a Iasã. Orixá da transição, é o momento de ligação de entre a terra e o céu. A mensagem: de nada vale a mentira. Em seguida João deixa mais uma vez Alice
A personagem vivida por Ingrid Guimarães prossegue com o negócio de sexy shop, mas angustiada, com a família desfalcada pela segunda vez. Alice recebe um prêmio de marketing, mas ouve outro contemplado dividindo a homenagem com quem ama; enquanto ela não tinha o marido. A foto da família é observada num porta-retrato; enquadramento perfeito, modelo que havia perdido. A salvação está no filho (ao qual não foi permitido o acesso a ver a mãe se masturbando), que fez uma artimanha antes de partir com o pai para uma viagem de barco (Alice havia arrumado a mochila direitinho dele, o que mostra a tomada de atitude para a mãe zelosa)
O anjinho puro deixou um desenho para a mãe, no qual aparecia João com uma mulher chamada Sheila. Uma travessura, própria do curumim, anjo contraditório que flecha, atinge, mas por amor. Sheila na verdade era uma empregada do barco, sem envolvimento com João. Mas Alice cai na cilada, não suporta ter perdido até o filho para uma viagem com outra mulher, além do marido. Alice se joga no mar; em seguida, encontra-os
O final do filme caminha para uma mulher bem sucedida (os toques da sócia pelo telefone avisando o sucesso nos negócios da Sex Delícia são análogos aos sinos do topo das Igrejas; Alice está em ascensão). Porém, a auto-afirmação não significa se desfazer das ligações com o próximo, a começar pelo amor à família (Alice joga o celular no mar, quando está com o marido e o filho no final selando a união). Entretanto, a última imagem de Alice no longa aparece em seguida, à noite, quando fala ao telefone com a sócia para saber o motivo da chamada que não pôde atender antes, por ter jogado o móvel na água do mar. A esposa não poderia ver a noite sem deixar de buscar o seu lugar ao sol e saber dos resultados das vendas
Alice é contraditória. Não dá para saber se ver a Sheila no desenho feito pelo filho causou mais repulsa por o perder para outra; justamente perder o menino, símbolo da união com o marido e último rescaldo da família. Ou então se Sheila causa um incômodo ao jeito competidor de Alice, que teria disputado o marido mais uma vez. Talvez esse seja um retrato da mulher hoje em dia; zelosa e firme com a família, porém obstinada em pular para atingir objetivos que tenham a ver com sua afirmação
Conclusão
“De pernas pro ar” acaba por atuar na fronteira entre a conservação e liberação; justamente aí onde atua o humor. Os efeitos são muitos no filme, que não implica necessariamente sentido perfeito. A discussão, acerca do encaminhamento dos personagens e seus tipos sociais, pode ficar em suspenso. Ouvia muitos risos na platéia do cinema; ao final, todos saíam ao som de um funk durante os créditos. Relatos de pessoas avaliando a possibilidade de abrir uma sexy shop; ouvi gente discutindo ainda se era para levar criança ou não para ver a comédia. Até que ponto a classificação deveria ir?
De pernas pro ar. Direção de Roberto Santucci. Roteiro de Marcelo Saback, Paulo Cursino. Com Ingrid Guimarães, Bruno Garcia, Maria Paula, Denise Weinberg, Flavia Alessandra, Antonio Pedro, Marcos Pasquim, Cristina Pereira. Paris Filmes, 14 anos